“Por que você está bloqueando essa rua?”
“É que não me deixaram passar por aqui um dia”
A cidade é uma ferida
aberta.
Basta você mexer dentro do seu núcleo e você
verá que sai pus, sai sangue, o esparadrapo tenta, mas não tapa todo o conteúdo
vermelho pulsante que os edifícios tentam esconder, os fluídos sempre escapam.
As ruas da cidade entopem, como veias sobrecarregadas, quando algo desorganiza seu
fluxo, entopem os esgotos, quando algum agente estranho bloqueia a passagem das
águas, dejetos transbordam, inundam, revela-se o imundo. A imunidade da cidade
baixa. Existia um rio passando por debaixo desse pavimento, se você aproximar
seu ouvido do chão, dizem, ainda é possível ouvir a corrente gritar na praça
central, ecos dos fantasmas que o progresso tentou soterrar.
Variedades de espécies
raras sobrevivem aqui. Nas beiradas, uma vegetação se alastra encontrando
desvios para continuar sua dança. Trepadeiras, rasteiras, traiçoeiras, o golpe
vem por baixo, sempre de baixo pra cima e quando a rasteira passa, arrasta a
paisagem para dentro do corpo dela, por que pertence a ela também o direito de
ser paisagem, signo, ruído dissonante, emblema do fim de si mesma. A dama veste
todo o vermelho que pode carregar, por que sabe que seu corpo é arma e sua
imagem é alvo. Mascarada, desce do centro para uma travessa, desce do salto
para o asfalto, rastro rubro, hoje quem tocou o sino da igreja foi ela, 7 badaladas
vindas da sua buceta, pós-buceta, anti-humana, Maria Padilha ressurgida das
cinzas pra fazer vingança. O quadril treme como chocalho de víbora, a polícia
chega e ameaça, fuga, hora de desaparecer.
(Todo olho é uma câmera de vigilância, há desejo de punição
em cada pálpebra, em cada esquina,uma polícia, em cada coração, residem vigias.)
3 espadas de Ogum na
mão abrem caminho para o cortejo que realiza sozinha, carrega uma lona vermelha
na mão; sua capa, vestido, morada, extensão da pele, bandeira de nenhuma
pátria. Desce a ladeira em um samba fúnebre, passista do silêncio, madame satã
encontrando seu caminho de volta pra casa. 7 segundos para o sinal vermelho
ficar verde, ela cai coreograficamente no meio da faixa de segurança, inicia-se
o rito sádico, quem não quer ver uma cadela morrer? Buzinas, xingamentos, câmeras,
minha pele retém o líquido do desprezo, me enfeito com teus presentes e
angústias. Sou o touro desviando dos farpões. Égua fugida solta na cidade.
Fera-ferida aberta para ser analisada.
Ras-te-jo em estado de graça..
Chego na rua onde não
me deixaram passar rodoviária um dia.
Uma pequena travessa
que liga a região da ao centro. Estreita. Pouco habitada.
O corpo todo pulsa em estado de emergência, existe uma força
imensa na fragilidade em que me encontro, exposta, caída no chão, répitl,
inventando uma dança de sobrevivência na calçada, que força movimentar nos
músculos para levantar? Que musculatura criar para suportar uma queda? Encontro
na minha ausência de proteção toda a potência que preciso para reconstruir o
meu levante. Dois rolos de fita de isolamento, que adornavam meu braço como pulseiras,
se desprendem de mim e criam linhas no espaço. Barreiras, faixas de bloqueio,
marcas de um acidente. Pare. Um corpo está em obras no meio do seu caminho.
Trincheira de travesti, guerrilha crua e quase nua. Na medida em que as linhas
são traçadas, os passantes encontram suas maneiras de atravessar. Alguns se
agacham, outrxs pulam, desviam, elxs também são incitados a criar sua própria
dança para continuar seus percursos, o corpo comum não atravessa aqui, é
necessário se desmontar um pouco se quiser passar.
Inauguro uma nova rua. Uma rua com meu nome. Faço a gira de
iansã com meu parangolé de fogo, vermelha, movimento os ventos para desobstruir
o que estava preso no local. Agencio e organizo o caos que instauro e também
deixo que ele me mova, fico tonta, a arapuca está armada, todxs caem. Peço para
que me tragam champanhe, afinal, isso é uma festa. Perlage, o mais barato do
mercado.
No meio do cenário devastado, ela segura a garrafa a espera
uma companhia.
Existe solidão em cada esquina, em cada espera desejosa por
encontros. Nas ruas, que amores são permitidos? Conclamo uma afetividade
monstruosa, borbulhante como champanhe. Pergunto para quem passa por ali se não
querem toma-lo comigo, digo, que hoje é meu dia de festa por que inaugurei uma
rua.
A maioria recusa, porém, uma senhora encantada com aquela desordem
diz que tem taças em sua casa e adoraria fazer um brinde comigo. Na espera,
acabo me distraindo com uma família que me observa ao longe. Vou até lá,
ofereço a minha bebida, o meu presente, recusam. Sou filmada por um celular, me
sinto televisionada, a garota-propaganda do Perlage. Me questionam, fascinadxs
e assustadxs comigo:
“ Por que você está bloqueando essa rua? ”
“ É que não me deixaram passar por aqui um dia ”
“ Por que não???”
“ Não pude, não me deixaram atravessar, aconteceu uma coisa
muito ruim”
“ Mas que coisa horrível!.....o que fizeram com você? você
foi agredida?”
“ Fui, mas hoje essa rua é minha ”
Invento uma situação que não aconteceu comigo exatamente
ali. Recrio minha história a mesclando com a de outras trans, travestis,
mulheres, bixas e lésbicas, corporalidades marcadas pela violência urbana.
Ficcionalizo minhas dores, maquio meus hematomas, para poder dançar todos esses
cortes. Começo a criar sentidos para mim e xs outrxs sobre tudo aquilo que
acontece ali, a barragem, a barreira, resposta violenta e festiva para celebrar
as possibilidades de trânsito, todos eles, livres.
Uma mulher voltando do trabalho vem conversar comigo, também
me filmava, digo que estou cansada, que estou precisando de um banho, pergunto
a ela se ela não me banharia com a champanhe.
“ Tipo, igual no ano novo? Assim? Chacolhando, estourando no
corpo?”
digo que sim, exatamente.
Me ponho de joelhos. Fecho os olhos. Acalmo a respiração.
Ela estora. Rí. Me lava. Os cabelos. O espartilho. A renda. Tudo
molha. Afrodite nasceu das espumas do mar. Renasço dessa benção espumosa e
doce. Rito profano transfeminino. Transfusão de nossos líquidos. Minha fúria
silencia. Agradeço.
Abandono o espaço sem olhar para trás, muda, com os restos
das fitas e faixas enroladas ainda em mim. O dia acaba, anoitece. A travessa
volta a funcionar como todo dia funciona. As lojas fecham e vão abrir amanhã,
no mesmo horário, nada muda. Mas a rasteira passou. A rasteira arrastou algo aquele
dia. O mapa foi alterado, as fronteiras do que é possível se fazer na rua,
alargadas. Borrou-se a maquiagem definitiva das possibilidades de um corpo.
Ocupou-se o tempo com algo além do útil, estamos na rua para desfuncionalizar
essa máquina de fazer sentidos, não fazemos um sentido, fazemos infinitos ritos
para dessacralizar a ordem. Ainda ras-te-jo em estado de graça.