Relato dos artistas: Cali Ossani (Rasteira nº3)




“Por que você está bloqueando essa rua?”

“É que não me deixaram passar por aqui um dia” 

A cidade é uma ferida aberta.

 Basta você mexer dentro do seu núcleo e você verá que sai pus, sai sangue, o esparadrapo tenta, mas não tapa todo o conteúdo vermelho pulsante que os edifícios tentam esconder, os fluídos sempre escapam. As ruas da cidade entopem, como veias sobrecarregadas, quando algo desorganiza seu fluxo, entopem os esgotos, quando algum agente estranho bloqueia a passagem das águas, dejetos transbordam, inundam, revela-se o imundo. A imunidade da cidade baixa. Existia um rio passando por debaixo desse pavimento, se você aproximar seu ouvido do chão, dizem, ainda é possível ouvir a corrente gritar na praça central, ecos dos fantasmas que o progresso tentou soterrar.

 Variedades de espécies raras sobrevivem aqui. Nas beiradas, uma vegetação se alastra encontrando desvios para continuar sua dança. Trepadeiras, rasteiras, traiçoeiras, o golpe vem por baixo, sempre de baixo pra cima e quando a rasteira passa, arrasta a paisagem para dentro do corpo dela, por que pertence a ela também o direito de ser paisagem, signo, ruído dissonante, emblema do fim de si mesma. A dama veste todo o vermelho que pode carregar, por que sabe que seu corpo é arma e sua imagem é alvo. Mascarada, desce do centro para uma travessa, desce do salto para o asfalto, rastro rubro, hoje quem tocou o sino da igreja foi ela, 7 badaladas vindas da sua buceta, pós-buceta, anti-humana, Maria Padilha ressurgida das cinzas pra fazer vingança. O quadril treme como chocalho de víbora, a polícia chega e ameaça, fuga, hora de desaparecer.

(Todo olho é uma câmera de vigilância, há desejo de punição em cada pálpebra, em cada esquina,uma polícia, em cada coração, residem vigias.)

 3 espadas de Ogum na mão abrem caminho para o cortejo que realiza sozinha, carrega uma lona vermelha na mão; sua capa, vestido, morada, extensão da pele, bandeira de nenhuma pátria. Desce a ladeira em um samba fúnebre, passista do silêncio, madame satã encontrando seu caminho de volta pra casa. 7 segundos para o sinal vermelho ficar verde, ela cai coreograficamente no meio da faixa de segurança, inicia-se o rito sádico, quem não quer ver uma cadela morrer? Buzinas, xingamentos, câmeras, minha pele retém o líquido do desprezo, me enfeito com teus presentes e angústias. Sou o touro desviando dos farpões. Égua fugida solta na cidade. Fera-ferida aberta para ser analisada.

Ras-te-jo em estado de graça..

Chego na rua onde não me deixaram passar rodoviária um dia.

 Uma pequena travessa que liga a região da ao centro. Estreita. Pouco habitada.
O corpo todo pulsa em estado de emergência, existe uma força imensa na fragilidade em que me encontro, exposta, caída no chão, répitl, inventando uma dança de sobrevivência na calçada, que força movimentar nos músculos para levantar? Que musculatura criar para suportar uma queda? Encontro na minha ausência de proteção toda a potência que preciso para reconstruir o meu levante. Dois rolos de fita de isolamento, que adornavam meu braço como pulseiras, se desprendem de mim e criam linhas no espaço. Barreiras, faixas de bloqueio, marcas de um acidente. Pare. Um corpo está em obras no meio do seu caminho. Trincheira de travesti, guerrilha crua e quase nua. Na medida em que as linhas são traçadas, os passantes encontram suas maneiras de atravessar. Alguns se agacham, outrxs pulam, desviam, elxs também são incitados a criar sua própria dança para continuar seus percursos, o corpo comum não atravessa aqui, é necessário se desmontar um pouco se quiser passar.  
Inauguro uma nova rua. Uma rua com meu nome. Faço a gira de iansã com meu parangolé de fogo, vermelha, movimento os ventos para desobstruir o que estava preso no local. Agencio e organizo o caos que instauro e também deixo que ele me mova, fico tonta, a arapuca está armada, todxs caem. Peço para que me tragam champanhe, afinal, isso é uma festa. Perlage, o mais barato do mercado.
No meio do cenário devastado, ela segura a garrafa a espera uma companhia.
Existe solidão em cada esquina, em cada espera desejosa por encontros. Nas ruas, que amores são permitidos? Conclamo uma afetividade monstruosa, borbulhante como champanhe. Pergunto para quem passa por ali se não querem toma-lo comigo, digo, que hoje é meu dia de festa por que inaugurei uma rua.
A maioria recusa, porém, uma senhora encantada com aquela desordem diz que tem taças em sua casa e adoraria fazer um brinde comigo. Na espera, acabo me distraindo com uma família que me observa ao longe. Vou até lá, ofereço a minha bebida, o meu presente, recusam. Sou filmada por um celular, me sinto televisionada, a garota-propaganda do Perlage. Me questionam, fascinadxs e assustadxs comigo:

“ Por que você está bloqueando essa rua? ”

“ É que não me deixaram passar por aqui um dia ”

“ Por que não???”

“ Não pude, não me deixaram atravessar, aconteceu uma coisa muito ruim”

“ Mas que coisa horrível!.....o que fizeram com você? você foi agredida?”

“ Fui, mas hoje essa rua é minha ”

Invento uma situação que não aconteceu comigo exatamente ali. Recrio minha história a mesclando com a de outras trans, travestis, mulheres, bixas e lésbicas, corporalidades marcadas pela violência urbana. Ficcionalizo minhas dores, maquio meus hematomas, para poder dançar todos esses cortes. Começo a criar sentidos para mim e xs outrxs sobre tudo aquilo que acontece ali, a barragem, a barreira, resposta violenta e festiva para celebrar as possibilidades de trânsito, todos eles, livres.
Uma mulher voltando do trabalho vem conversar comigo, também me filmava, digo que estou cansada, que estou precisando de um banho, pergunto a ela se ela não me banharia com a champanhe.

“ Tipo, igual no ano novo? Assim? Chacolhando, estourando no corpo?”

digo que sim, exatamente.

Me ponho de joelhos. Fecho os olhos. Acalmo a respiração.

Ela estora. Rí. Me lava. Os cabelos. O espartilho. A renda. Tudo molha. Afrodite nasceu das espumas do mar. Renasço dessa benção espumosa e doce. Rito profano transfeminino. Transfusão de nossos líquidos. Minha fúria silencia. Agradeço.

Abandono o espaço sem olhar para trás, muda, com os restos das fitas e faixas enroladas ainda em mim. O dia acaba, anoitece. A travessa volta a funcionar como todo dia funciona. As lojas fecham e vão abrir amanhã, no mesmo horário, nada muda. Mas a rasteira passou. A rasteira arrastou algo aquele dia. O mapa foi alterado, as fronteiras do que é possível se fazer na rua, alargadas. Borrou-se a maquiagem definitiva das possibilidades de um corpo. Ocupou-se o tempo com algo além do útil, estamos na rua para desfuncionalizar essa máquina de fazer sentidos, não fazemos um sentido, fazemos infinitos ritos para dessacralizar a ordem. Ainda ras-te-jo em estado de graça. 

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