A linguagem cinematográfica e seu espectador





Por Vanessa Levati Biff*

O cinema é a forma contemporânea da arte: a da imagem sonora em movimento. Nele, a câmera capta uma sociedade complexa, múltipla e diferenciada, combinando de maneira totalmente nova, música, dança, literatura, escultura, pintura, arquitetura, história e, pelos efeitos especiais, criando realidades novas, insólitas, numa imaginação plástica infinita que só tem correspondência nos sonhos. (CHAUÍ, 2002, p. 333)
            O cinema possibilitou introduzir na irrealidade da imagem, a realidade do movimento e, assim, elevar o imaginário a um grau nunca alcançado antes. Segundo Junkes (1979, p. 23-29), essa ilusão que é o cinema exerceu e exerce muitas e variadas funções sociais.
Cinema é diversão, se voltarmos às suas origens, constataremos que o cinema foi inicialmente uma diversão, caráter conservado até hoje, muito acima do caráter estético que veremos neste artigo.
Cinema é indústria, como indústria, o cinema compreende num complexo processo de realização de um filme, envolvendo numerosos serviços especializados.
Cinema é comércio, estritamente ligado ao caráter industrial está o comercial, no qual envolve três grandes áreas: a produção, a distribuição, e a exibição de um filme. Para ressarcir o custo de produção, o cinema teve que entrar na linha comercial, e para atrair o espectador e recuperar o capital, com lucros, o cinema passou a satisfazer os gostos desses consumidores, ou seja, da grande massa.
Cinema é uma usina de sonhos, o filme se esforça a responder a um certo número de aspirações coletivas,  procurando explorar a projeção de tendências e extintos do subconsciente coletivo.
Cinema é difusor de cultura, ele transmite idéias através de imagens, propagando conhecimento, cultura, informação, conscientização, e até solução para conflitos do cotidiano, e já que ele torna próximo o mundo, leva-nos a conhecer novos costumes.
Cinema é arte, o cinema é uma arte comunicativa, e como veremos neste artigo conta com uma série de recursos de linguagem e simbolismo para atingir esse caráter artístico. E agora podemos ressaltar algumas peculiaridades sociais do cinema como arte.
Cinema é arte anestésica, o ambiente isolante, o conforto das salas de exibição, o poder da imagem em movimento e o envolvimento sonoro, tudo leva o cinema mais do que qualquer outra arte, a anestesiar a consciência do espectador, a isolá-lo do mundo real e arrastá-lo a uma espécie de sonho consciente.
Cinema é arte das massas, cinema é uma arte social, nos dois sentidos, na sua criação e na sua destinação, é uma obra de equipe destinada à multidões.
Cinema é arte universal, principalmente por ser de fácil acesso e compreensão, atingindo todos os recantos do mundo, todas as idades e classes sociais.
Cinema é uma arte síntese, ele aproveita elementos das demais artes, como pintura, arquitetura, música e etc, para criar uma nova forma de arte.
Desde a sua invenção o cinema passou por diversas transformações sociais, como também técnicas, estéticas, ideológicas, estilísticas e de conteúdo.
A cada uma destas mudanças correspondeu não apenas uma forma de se fazer cinema, como também diferentes formas de se pensar e analisar o cinema.
Na medida em que o cinema é suscetível de abordagens muito diversas, não pode haver uma teoria de cinema, mas ao contrário, algumas teorias do cinema, que correspondam a cada uma dessas abordagens. Uma delas refere-se a uma abordagem estética.
A estética abrange a reflexão sobre os fenômenos de significação considerado como fenômenos artísticos. A estética do cinema é, portanto, o estudo do cinema como arte, o estudo dos filmes como mensagens artísticas. Ela subtende uma concepção do “belo” e, portanto, do gosto e do prazer do espectador, assim como do teórico. Ela depende da estética geral, disciplina filosófica que diz respeito ao conjunto das artes. (AUMONT, 2005, p. 15)
Com o estudo da estética do filme, estamos mais perto do cinema enquanto arte. A arte do filme encontra-se no mesmo plano semiológico que a arte literária, as combinações e as limitações propriamente estéticas. Na literária: versificação, composição, figuras. No cinema: enquadramentos, movimentos da câmara, efeitos de luz, o que chamamos de linguagem cinematográfica, o conjunto de planos, ângulos, movimentos de câmera e recursos de montagem que compõem o universo de um filme.
Sendo assim os aspectos da linguagem cinematográfica devem ser planejados para se obter a melhor forma de expressão. Para isso, é preciso ter em conta que cada plano, movimento de câmera, ângulos e iluminação, tem um efeito psicológico, um valor dramático específico e exerce seu papel dentro da totalidade que é um filme. Portanto, ao se escolher um enquadramento, deve-se levar em conta o seu efeito visual individual e também como ele se encaixa na continuidade do trabalho.
Percebe-se que foi necessário deixar muita coisa de lado para identificar a imagem cinematográfica à percepção natural. Até o movimento: “Nos dizem que o cinema reproduz o movimento da vida.” (BERNADET, 1986, p. 18). Mas sabemos que não há movimento na imagem cinematográfica. O movimento é uma ilusão, assim como a profundidade, já que a sucessões de imagens que vemos na tela são sempre imóveis e planas.
A impressão de movimento nasce do seguinte: “fotografa-se” uma figura em movimento com intervalos de tempo muito curtos. São vinte e quatro fotografias por segundo que, depois, são projetados neste ritmo. Ocorre que o nosso olho não é muito rápido e a retina guarda a imagem por um tempo maior que 1/24 de segundo. De forma que, quando captamos uma imagem, a imagem anterior ainda está no nosso olho, motivo pelo qual não percebemos a interrupção entre cada imagem, o que nos dá a impressão de movimento continuo, parecido com o da realidade. (BERNARDET, 1986, p. 18)
 
É só aumentar ou diminuir a velocidade da filmagem ou da projeção para que essa impressão se desmanche.
Além reprodução do movimento, que ajuda em muito a percepção da profundidade, duas técnicas são usadas: a perspectiva, a projeção em uma superfície bidimensional de um determinado fenômeno tridimensional, usada desde o Renascimento, e a profundidade de campo, onde profundidade se dá através da nitidez da imagem.
Como se percebe a impressão de profundidade não é próprio do cinema, mas nele juntamente com a ilusão de movimento ela acaba por se tornar mais real.
Reencontramos aqui a impressão de realidade, fenômeno de muitas conseqüências estéticas, mas cujos fundamentos são sobretudo psicológicos. No ponto de vista temático, conforme Metz (1977) os assuntos de filme podem ser classificados em “realistas” e “irrealistas”, como se queira, mas o poder do veículo fílmico é comum aos dois “gêneros”, garantindo ao primeiro a sua força de familiaridade tão agradável a afetividade, e ao segundo seu poder de desnorteio estimulante a imaginação. Uma obra de ficção, por exemplo, só é fantástica se convencer, senão é apenas ridícula.
Ambos os fatores tem que convencer o espectador e são decisivos para que essa impressão de realidade se torne fantástica.

Todo real percebido passa pela forma de imagem. Depois, renasce em lembrança, isto é, imagem de imagem. Ora o cinema, como qualquer outra representação (pintura, desenho), é uma imagem de imagem, mas como a foto, é uma imagem perceptiva, e melhor do que a foto, é uma imagem animada, isto é viva. Como representação de uma representação viva, o cinema convida-nos a refletir sobre o imaginário da realidade e a realidade do imaginário. (MORIN , 1977, prefácio, apud  AMOUNT, 2005, p. 236)
 
O filme reencontra, portanto, “a imagem sonhada, enfraquecida, diminuída, aumentada, aproximada, deformada, absedante, do mundo secreto para onde nos retiramos, tanto na vigília, como no sono, dessa vida maior que a vida onde dormem os crimes e os heroísmos que jamais realizamos, onde se afogam nossas decepções e germinam nossos desejos mais loucos” (POISSON apud AMOUNT, 2005, p. 237).
Junkes (1979, p.106) nos coloca que na composição do quadro através da linguagem cinematográfica o cineasta escolhe e ordena o fragmento da realidade, densificando-o, chamando nossa atenção sobre o mesmo, fazendo-nos ver o que comumente não vemos, ou vemos de maneira diferente.
O bom espectador da obra sente ante a mesma o que chamamos de “emoção estética”, isto é, uma emoção primitiva, feita de admiração, surpresa, reconhecimento e alegria, ou tristeza e até de angústia. Contudo, para experimentar tal emoção estética, é preciso que também o espectador se coloque em estado de disponibilidade interior.
Perante toda essa abordagem nos questionemos qual o desejo do espectador de cinema? Qual é a natureza desse desejo, que nos leva a nos fechar durante horas em uma sala escura, onde numa tela se movem imagens? O que vamos buscar ali? O que se troca pelo preço da entrada?
Se à pintura está para a sala de museu. O filme está para a sala de cinema. Se na pintura desfruta-se do que é tradicional, sem criticá-lo, critica-se o que é novo sem desfrutá-lo. No cinema filme de sucesso é o que todo mundo viu, e que todo mundo gostou. A recepção coletiva está condicionada pelo caráter coletivo da reação.
Tudo que foi se falado até aqui nos dá argumento necessários para explicar o que difere o espectador de cinema para o de uma pintura, por exemplo.
Segundo muitos autores pesquisados, citaremos Junkes (1979, p.108), “os principais temas cinematográficos são aqueles que melhor nutrem os sonhos de tanta gente: o erotismo, o romantismo, o crime, a aventura, o heroísmo, o sucesso”
Então qual sujeito-espectador é induzido pelo dispositivo cinematográfico: a sala escura, o investimento excessivo das funções visuais e auditivas?
A resposta deve ser certamente procurada do lado de um estado de abandono, de solidão, de carência: o espectador de cinema é sempre mais ou menos um refugiado para quem se trata de reparar alguma perda irreparável, mesmo à custa de uma regressão passageira, socialmente regulada, no tempo de uma projeção.
“O espectador de cinema sacia suas necessidades emotivas [...] O espetáculo assegura-lhe um repouso mental e físico”. (JUNKES, 1979, p.108)
O espectador num certo tédio, cansado das dificuldades da vida, acaba encontrando no cinema um caminho de fuga para a fantasia, sem espírito critico, ele permite que seja mais influenciado, quer apenas entregar-se durantes algumas horas à esse mundo ilusório, sem refletir o que é real e o que é certo.
Talvez por isso o cinema virou mais imaginação do que realidade. A maioria das pessoas que vão ao cinema recebem uma avalanche de imagens e não se encontram aptas a identificá-la enquanto uma linguagem.
 O que se faz necessário é o espectador de cinema, assim como o de qualquer outra forma de arte, ser mais critico e ter mais consciência diante da obra.
Apesar dos pesares, Benjamin tinha razão ao considerar o cinema a arte democrática do nosso tempo. (CHAUÍ, 2002 p. 333)
                                                                                                             

REFERÊNCIAS
AUMONT, Jacques et al. A Estética do filme. 5. ed Campinas, SP: Papirus, 2005. 304p.
AUMONT, J; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003. 335 p.
BERNARDET, Jean - Claude. O que é cinema. 8 ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986. 117 p. (Primeiros Passos 9)
CHAUÍ, Marilena de Sousa. Convite à filosofia. 12 ed. São Paulo: Ática, 2002. 440 p.
METZ, Christian. A significação no cinema. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1977. 295 p. (Coleção debates 54)
JUNKES, Lauro. A narrativa cinematográfica: Introdução à linguagem e à estética do cinema. Florianópolis: [s.n.], 1979. 113 p.




* Cursando Especialização Educação Estética: Arte e as perspectivas contemporâneas Bacharel em Artes Visuais pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC)

Semana Integrada dos Cursos de Artes Visuais, História, Letras e Sociologia






A equipe do Laborativo foi convidada a participar da Semana Integrada dos Cursos de Artes Visuais, História, Letras e Sociologia da Unesc, que ocorre de 27 a 31 de agosto, com suas pesquisas de conclusão de curso. Mais informações sobre o evento: aqui

A importância dos estudos de Vygotsky para o campo da educação estética*




Por
Ana Clara Sombrio Picolo
Vanessa Levati Biff

Com base no livro de Oliveira, este artigo tem por objetivo analisar a importância dos estudos de Vigotsky para o campo da Educação Estética e propõe-se discutir a questão da leitura da obra de arte contemporânea, definindo-a como arte de difícil acesso, onde o papel do mediador se torna fundamental.
A partir do exposto, observamos que estamos diante de um questionamento: De que maneira se desenvolve a compreensão de uma obra de arte contemporânea?
Compreender o estado da arte atual implica em colocar o espectador no abismo. Perguntar: Como entender a arte hoje?  É uma pergunta problemática e que exige, no mínimo, uma considerável vivência com as artes.
A partir do momento em que o conceito estético da arte se desmembrou do que era até então considerado arte, pintura e escultura, é exigido do espectador uma noção mais aprofundada dos conceitos estéticos que se tem hoje.
Nesses casos a mediação tem se tornado quase que fundamental na compreensão dos valores proposto pelo artista. Podemos relacionar isso ao pensamento de Vygotsky onde o processo de mediação é fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
Uma das características do objeto artístico é ser interpretado, por outro lado, o aspecto do homem é interpretar.
Essa interpretação depende totalmente desse espectador, das relações que ele traça junto a sua bagagem cultural, ao que ele já conhece, às suas memórias, a sua capacidade de perceber.
Vygotsky coloca que a percepção ao longo do desenvolvimento humano torna-se cada vez mais um processo complexo, que se distancia das determinações fisiológicas dos órgãos sensoriais, entretanto, principalmente através da internalização da linguagem e dos conceitos e significados culturalmente desenvolvidos, a percepção deixa de ser uma relação direta entre o individuo e o meio, passando a ser mediada por conteúdos culturais, agindo portanto num sistema que envolve outras funções, ou seja, ao percebemos numa obra elementos do mundo real, fazemos interferências baseadas em conhecimentos já adquiridos.
Em se tratando de arte, é necessário saber conduzir o espectador/aluno/observador, permitindo que a soma das interpretações pessoais de uma obra ofereça, quase sempre, novas possibilidades. Isso nos remete ao estudo de Vygotsky e seu conceito da plasticidade cerebral, que coloca que a espécie humana dispõe de infindáveis possibilidades de desenvolvimento que só serão ativadas na interação com o outro.
Em outras palavras a discussão acerca do objeto de arte é uma ampliação das possibilidades interpretativas do objeto até os limites por ele próprio impostos, que neste momento é ativado pelo papel do mediador.
Assim, cabe ao mediador de exposições, bem como ao professor, saber se articular entre as interpretações previamente despertadas pelo espectador, pois serão essas que vão conferir coerência e significado ao seu contato com objeto artístico.
Seria tomar como partida aquilo que observador já sabe (desenvolvimento real), objetivando o amadurecimento dessa interpretação, o que define Vigotsky como zona de desenvolvimento proximal.
O mediador, portanto, não só apresenta um determinado conteúdo, mas estimula o valor significativo de tal objeto, ele dinamiza o fornecimento de informações para que as interpretações façam sentido, estimulando a reflexão sobre a percepção de cada aluno sobre a mesma obra de arte.
E não somente isso, ele favorece a recriação do objeto artístico, que nesse estágio se torna um objeto aberto a novas interpretações, não se limitando apenas às intenções do artista, mas também levando o espectador a provocar novos questionamentos estéticos e a estabelecer seus critérios críticos de arte, que até então eram nulos.
Podemos assim estabelecer essa relação ao pensamento de Vygotsky cujo o desenvolvimento do espectador não se dá  somente através da atividade cerebral, suporte biológico, mas também nas relações sociais entre individuo e o mundo exterior, neste caso, na relação estabelecida entre artista, obra e mediação.



REFERÊNCIAS

LIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento um processo sócio-histórico. 4 ed. São Paulo: Ed. Scipione, 1999. 111 p. 


*Artigo elaborado para a disciplina Teoria do Conhecimento da Especialização Educação Estética: Arte e as perspectivas contemporâneas na Universidade do Extremo Sul Catarinense.
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